Maurice Lachâtre (1814-1900) foi um desses homens inquietos, ativos, militantes, que representam em cheio o século XIX, que ele aliás atravessou inteiro.

Esse século, que na França, embora herdeiro da Revolução Francesa, teve que lutar o todo tempo, para recuperar os ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, opondo-se às forças reacionárias da Igreja e da monarquia. Esse século que continuava a Revolução Industrial do século anterior e que despertou tantos pensadores, para a crítica do modelo capitalista que se instalava com pleno vigor.

Entre esses pensadores que buscavam uma sociedade mais justa, mais de acordo com os anseios humanistas de igualdade, aparecem socialistas utópicos, anarquistas, comunistas, socialistas científicos: Saint-Simon, Fourier, Cabet, Proudhon, Marx e Engels. Diferentes abordagens, diferentes caminhos, mas todos empenhados em criticar o sistema de exploração do trabalho de muitos, em benefício da riqueza de alguns.

Lachâtre, como editor, escritor, ativista político, esteve em relação de amizade ou de ideias com todos esses personagens do século XIX.

Diz ele, no Dicionário Universal, publicado na década de 1850, ter sido: “alternadamente, saint-simoniano, falansterista (fourierista), partidário das ideias proudhonianas”, mas que chegou “de progresso em progresso a se filiar ao comunismo (de Cabet)”. Contudo, não foram apenas essas correntes com que Lachâtre simpatizou e por cujas ideias militou: também teve um dispensário de homeopatia, interessou-se pelo espiritismo e no final da existência, afirmava-se anarquista.

Incoerência, ecletismo? Não, apenas busca inquieta e sincera, não-dogmática, por ideias transformadoras, por militâncias mais efetivas de mudança social.

Sua atividade de editor, entretanto, perpassa toda a sua vida, tendo publicado várias obras ligadas a essas correntes mencionadas, guardando a honra histórica de ter publicado O Capital de Marx, pela primeira vez em francês, e em fascículos (de modo a popularizar as ideias). Uma faceta sua aliás, como editor, além de favorecer a divulgação de todas as ideias novas de seu momento histórico, era a de popularizar conhecimentos. Por isso fez mais de uma edição do seu Dicionário Universal, uma espécia de enciclopédia da época.

Anticlerical virulento, escreveu História dos Papas – mistérios e iniquidades da Corte de Roma.

Sua relação com Kardec interessa particularmente, porque nos mostra uma faceta pouco conhecida do próprio Rivail. Em 1839, os senhores De la Chatre e Rivail fundaram um Banco de Trocas (Banque des Échanges), ideia proudhoniana, que consistia numa espécie de cooperativa de profissionais das mais diversas áreas (tanto comerciantes, quanto prestadores de serviço), que poderiam trocar mercadorias, serviços e créditos entre si. A proposta de estimular o pequeno empreendedor, de organizar associações livres de ajuda mútua, para fazer frente aos grandes capitais, é uma proposta aparentada com o anarquismo e com algumas formas de socialismo utópico (entenda-se que esse qualificativo que hoje usamos de socialismo utópico, foi dado por Marx e Engels a todas as formas de socialismo, que precederam o socialismo por eles proposto, como “científico”). É preciso entender também que anarquismo nesse sentido é a corrente que mais claramente expressa uma mudança social, baseada na livre associação, na autogestão, com o enfraquecimento e abolição do Estado. Não estamos com isso defendendo a ideia de que Rivail fosse anarquista, pois seu Plano de melhoria do ensino público demonstra que ele acreditava de alguma forma na atuação estatal a nível pedagógico. Interessante, porém, notar que no Journal de la Banque des Échanges (Jornal do Banco de Trocas) (dirigido por Lachâtre e Rivail), há uma notícia elogiosa de uma escola organizada por uma cooperativa de pais. Observamos assim que tanto Lachâtre, quanto Rivail, de formas diferentes e em momentos comuns ou diversos, se deixaram influenciar ou fizeram parte das ideias progressistas de seu tempo. Mais tarde, na Revista Espírita, Rivail faz menção a saint-simonianos, a Fourier, a Jean Renaud (outro socialista utópico de então).

A amizade entre Lachâtre e Kardec se estende por anos a fio, pois este último escreveu vários verbetes relacionados ao espiritismo no Dicionário Universal. E em 1867, vemos Lachâtre, exilado na Espanha, por ter se oposto à política do Segundo Império de Luis Napoleão Bonaparte, recebendo as obras de Kardec em Barcelona. Aquelas mesmas que foram incineradas no Auto-de-Fé, cujas cinzas foram enviadas por Lachâtre a Kardec.

Em tudo e por tudo, Lachâtre representa seu século, que ajudou a tecer através da escrita, mostrando o quanto uma vida conectada com seu tempo e atuante na história deixa traços marcantes para a humanidade.

Ao que parece, no último quarto do século XIX, final da existência de Maurice Lachâtre, ele se distanciou mais do espiritismo e se aproximou mais fortemente do anarquismo. Mas, conta François Gaudin, seu biógrafo e estudioso de suas obras, que ele ainda se referia à morte, como “volta ao mundo dos Espíritos”, indicando suas convicções espíritas.

Em tudo e por tudo, Lachâtre representa seu século, que ajudou a tecer através da escrita, mostrando o quanto uma vida conectada com seu tempo e atuante na história deixa traços marcantes para a humanidade.


Por Dora Incontri

Maurice Lachâtre

Liberdade de expressão do pensamento

Filho do coronel Pierre Denis, barão de La Châtre, Maurice de La Châtre nasceu na comuna de Indre, mudou-se ainda novo para a capital francesa, então em grande efervescência cultural.
Em Paris torna-se um defensor intransigente da liberdade de expressão, do pensamento de vanguarda e em constante confronto com a Igreja e o regime de Napoleão III. Assim, é preso em 1857 por haver publicado a obra de Eugène Sue, Mystères du peuple (Mistérios do Povo), tendo ainda que pagar uma multa de 6 mil francos.